Carta para uma radfem: reflexão para corpxs em democracia.
escrito por a Andrógina
25 de outubro de 2021
Já vimos que a partir do machismo, institucionalizar um gênero exclusivo ao genital é arma que justifica a violência e legitima a hierarquia de um império sexista.
Pensar sobre igualdade, estudos de gênero e movimentos sociais são modos de redesenhar os pensamentos cis centrados em vários eixos.Um deles, talvez o mais importante , é o sexo, e como ele foi utilizado como ferramenta para criar e assegurar a branquitde e o modelo compulsório de masculinidade que se abastece de valores adversos, como a paternalismo e a cultura do estupro (código, principalmente entre homens cis para usarem da violência contra a mulher cis, como forma de cuidado à própria violência que eles criam), por exemplo.
O mundo é genealogicamente atribuído a anatomia macho para a identidade social atribuida ao homem cis, o que quer dizer que ter um pinto deveria conferir alguma segurança, mas será que essa segurança é suficiente para sobreviver em um mundo que odeia tudo que não seja homem e cis?
Acreditar que ser mulher é exclusivo a quem tem vagina, mesmo que por um viés que acredite na equidade, é conduzir as futuras gerações a acreditarem que a liberdade de uma pessoa sempre estará condenada ou não por um pedaço de carne que ela carrega no meio das pernas.
Pensar sobre isso, não é esquecer a dificuldade de legitimidade, poder e prazer da vagina, que foram, sim, negligenciados e devem ser resgatados com toda força política, para permitir que o prazer, assim como o corpo, possam ser espaços democráticos. Mesmo havendo mulheres trans que ampliam o modelo exclusivo da cisgeneridade, também há homens trans que fazem o mesmo, e, de algum modo, escancara a ineficácia do gênero pelo viés binário e nas pautas políticas. Não porque não exista gênero, mas porque o gênero só é legítimo ao ser plural. Pela saúde de uma sociedade, não deve ser vinculado a uma instituição restrita, que celebra corpos apenas por serem ferramentas de procriação.
Ser trans é cruzar o horizonte da cisgeneridade e sobreviver todo dia, como quando saio de casa e, mesmo munida de branquitude, ainda não tenho certeza de que voltarei. É uma guerra que venho ganhando, um dia de cada vez. Será que essa violência que você sofre, que te assusta , não se parece em nada com a minha? Assim como as vezes que sofri assédio na rua, no trem, só pelo fato de acharem que eu tinha uma vagina ou que não era “merecedora” de um pênis? Ou, mais especificamente, a violência hospitalar e obstetrícia que homens trans vêm sofrendo, por não validarem sua paternidade?
A condição extra-binária, ou não-heterosexual, foi o que fez com que minha ancestralidade fosse apagada, e, quando aparece na história, ela é massivamente desprovida de humanidade. Desde a caça e morte a grupos de travestis e homossexuais, até tratamentos psiquiátricos severos com choques e mutilações para “conversão” contra a vontade do paciente. A possibilidade de ser presa ou preso por não se vestir com pelo menos três peças “apropriadas ao seu gênero”, ter sua existência marginalizada a ponto de existir uma cultura no consciente coletivo sobre onde meu corpx habita (como becos e ruas na prostuição) e o tratamento das condições LGBTQIA+ como doenças que poderiam ser contagiosas (visto o surgimento da Aids e a falsa e desastrosa campanha do "câncer gay”). Mesmo tendo a transgeneridade deixado de ser doença apenas em 2018, tendo que ver até hoje, uma atrás da outra, filmadas e impunes, a morte de milhares de irmanes, entre adultos e crianças.
Não é um capricho, mas, inevitavelmente, pelo prisma social machista, estou do mesmo lado que vocês. O movimento feminista nos orienta, assim como também confirma que através do feminismo (e não do femismo) existe uma luta para não se igualar àquela instituição violenta que vem, de longa data, nos oprimindo. Se há equidade ou a busca por ela, deve haver democracia, ou pelo menos um mundo ou uma causa que não diminua a existência de alguém por um pedaço de carne, ou por sua aparência (devemos ser sinceros que os ataques direcionados a pessoas trans são para aquelas que não tem “passabilidade” ou assumem tal condição publicamente), pois é num mundo assim que eu assim como foram hermafroditas (hoje como intersexo), andrógina(o)s, transformistas, travestis, transexuais, lésbicas, gays, trangêneros, já sofremos tanto, pelo dispositivo social que te objetifica e a nós raspa a nossa humanidade.
Definitivamente, não, não somos inimigues.
texto revisado por Julia Bernardet.