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Falar (agir) de identidade é refazer estruturas

escrito por a Andrógina   

 15 de janeiro de  2023

A arte abstrata (ou abstração) é destacada por abolir a representação e “voltar às coisas mesmas”, aos elementos básicos das linguagens artísticas. Ou, pelo menos, é o que diz a comunidade artística cisgênera, que olha apenas para o próprio umbigo. De qualquer modo, com o tempo, esta demanda foi desbancada pela arte conceitual e desdobra-se no contemporâneo.

 

A cisgeneridade vê em si a resposta para todas as perguntas e a sacralização de elementos básicos perante suas narrativas na suposta pureza, ingênua e superficial, de sua leitura até sobre o ponto, a mancha ou a linha. Pesquisas de arte e produções de artistas fora do eixo cis e branco são comumente interpretadas como nada mais do que uma variação estilística ou identitária, com recortes rasos e deslocados, guiados por um pensamento ciscentrado e equivocado. Contudo, reivindico que a pesquisa de artistas trans não trata apenas de si, mas de toda uma perspectiva de mundo por uma lente "extra-binária".

 

A arte não só comove pessoas, como tem o potencial de reorganizar territórios e realocar narrativas. Por mais purista ou abstrata, essa arte que vemos repousa em um mundo confortável em suas identidades e conflitos heteronormativos e cisgêneros. Por isso, a existência extra-binária, contestada e negada, gera novas percepções de mundo, corpo e arte, sendo até mesmo o elemento mais simples, a partir  do impulso desse corpe/identidade que hackea e vive outra narrativa.

 

A questão é que inúmeros curadores e agentes de arte acreditam ter autoridade sobre certas especificidades pelo viés de uma arte socialmente dominante, e acabam por diminuir as produções de corpos descentralizados e criar uma seleção de personagens ou uma cartilha do que seria um trabalho legítimo, sendo esta geralmente formada de leituras rasas e midiáticas, exigindo pesquisas panfletárias e discursivamente repetitivas. A temida "arte identitária", que se mostra sempre temporal e frívola (já passamos por esses movimentos antes), reforça uma sociedade que não entende efetivamente que a arte é produzida e reforçada por vias estruturais.

 

Questionar a estrutura binária das narrativas criadas permite-nos reinterpretar um dos signos mais simples e que endossa todo o discurso divisor binário e sexista: a linha. Linha que não é apenas corte e que, para uma artista LGBTQIAPN+, tem corpo e espaço entre, é uma fronteira viva. Certamente, tomar essas questões para si não cabe em um corpo que recebeu e viveu apenas o lado confortável da história pré-fabricada, mas serve muito bem em uma corpa que revisita as convenções e as usa de combustível, além da raiva, da revolta e da dor de existir, para criar uma outra perspectiva tão legítima quanto.

texto revisado por Julia Bernardet.

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